O abuso da retórica da cientificidade como
recurso de poder é comum entre neoliberais que travestem a opção política como
julgamento neutro. O nível de autoengano, para dizer o mínimo, chegou a
extremos em artigo recente de Samuel Pessôa (Folha, 12/10).
O físico-economista alude à genética de
Bruna Marquezine para defender que progressos no bem-estar social dos
brasileiros devem-se ou à “evolução natural” da sociedade ou a reformas de
Fernando Henrique Cardoso que, no fundo, teriam semeado os avanços colhidos por
Lula e Dilma. Pessôa alega que a retórica petista “descontextualiza” FHC e
distorce informações para favorecer Lula e Dilma.
Na verdade, é Pessôa quem omite
informações, recorre a truques de retórica e distorce a realidade visando ao
melhor efeito político para o PSDB.
A principal omissão é que FHC executou a
plataforma neoliberal de ampliar o papel do mercado e da competição para
selecionar os melhores e punir preguiçosos, prometendo crescimento:
privatização de estatais, desregulamentação do mercado de trabalho e liberalização
comercial e financeira.
A promessa era falsa: a renda
domiciliar per capita caiu entre 1995 e 2002, segundo dados do IBGE
(Pnad), tendo aumentado mais de 50% a partir de 2003, com a recuperação do
papel do Estado com Lula e Dilma. A melhoria de outros indicadores tampouco
resultou da “evolução natural”, a saber:
1. Desigualdade (Gini): enquanto se manteve
estável com FHC, caiu 10% com Lula e Dilma diante da valorização do salário
mínimo, da defesa e formalização do emprego e ampliação do gasto social, que
explicam a queda muito mais do que o avanço “natural” da educação e da
demografia;
2. A propósito de progresso educacional, em
2001 FHC vetou o 1º Plano Nacional de Educação (PNE), que determinava
investimentos de 7% do PIB até 2010, deixou o País sem meta de financiamento e
concluiu mandato com 3,5% do PIB; em 2014, Dilma aplica 6,4% do PIB em educação
e sanciona o 2º PNE com destino de 10% do PIB até 2024.
3. Sobre demografia, Pessôa alude a um
conceito vago para explicar seu impacto na queda do desemprego: a “transição
demográfica”. Talvez se refira à queda da natalidade e o envelhecimento da
população, mas a verdade é que isso ainda não esgotou o bônus demográfico
(maior proporção de pessoas em idade ativa), pois os adultos nascidos na
vigência de taxas mais altas de crescimento populacional ainda não se aposentaram.
Ao contrário de reduzir o desemprego, isso o aumentaria caso a oferta de
empregos não tivesse aumentado e, principalmente, se não houvesse intensa
inserção de jovens à escola, atrasando sua entrada no mercado de trabalho!
De fato, Pessôa omite a significativa
ampliação das transferências de renda condicionadas à matrícula escolar, além
de bolsas e crédito subsidiado para ensino técnico e universitário e a criação
de 18 novas universidades federais (contra zero com FHC) e 178 novos campi. Com
isso, as matrículas no ensino superior elevaram-se de 2 milhões (2002) para 7,5
milhões (2014), complementados por 8 milhões de alunos no Programa Nacional de
Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec): produto da evolução natural?
4. Pessôa alega que mais da metade do
crescimento da dívida pública com FHC resultou da assunção de dívidas passadas
não contabilizadas. Isso é pura invenção: a “assunção de dívidas” explica menos
de 10% da dívida e foi compensada em dobro (!) pela venda de estatais e a
elevação de impostos. O que explode a dívida são juros altos e títulos
indexados em dólar para evitar a crise da âncora cambial antes da reeleição de
FHC em 1998. No próprio estudo do IPEA citado por Pessôa, correção cambial e
juros altos contribuem com mais do que 100% da multiplicação da dívida por
cinco entre 1995 e 2002! A dívida só não se elevou mais por causa das
privatizações e do superávit primário depois de 1998.
5. Três idas ao FMI: Pessôa cita artigo de
M. Bolle que, à maneira de Goebbels, não chama as coisas pelo nome e alega que
empréstimos do FMI não indicam que o Brasil “quebrou”, pois “facilitaram a
empreitada” da inclusão social. Por que “quebrar” designaria o fato de não
obter financiamento do FMI e decretar moratória, ao invés de precisar dele a ponto
de, no desespero, realizar políticas que levaram o desemprego a 15% e prometer
vender o Banco do Brasil, a Caixa e as demais empresas estatais ainda não privatizadas,
inclusive a PetrobraX?
6. Sobre o desemprego, Pessôa incorre
naquilo de que acusa o PT: o “truque retórico de escolher estatísticas e bases
de comparação de forma oportunista”. Em 2011, ele escreveu que, “entre julho de
2003 e julho de 2011, a taxa de desemprego caiu mais de 50% (!), apresentando
redução de 13% da população economicamente ativa para 6,2%”, citando dados de
regiões metropolitanas captadas pela Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE. No
domingo, usou a PNAD para afirmar que “se tomarmos como base de comparação
2002, último ano de FHC, o desemprego caiu 2,6 pontos percentuais (!), de 9,1%
para 6,5%”, sem sequer discutir que a PNAD capta menos a “transição
demográfica” que cita. Ora, 50% ou 2,6%? É provável que a diferença no modo de
calcular a redução do desemprego em 2011 e em 2014 se deva a oportunismo
político e truque de retórica, não?
A piada sem graça não é que a retórica
petista se aproprie da “evolução natural” de Bruna Marquezine, mas que seus
críticos precisem se iludir quanto à rejeição da “herança natural” do neoliberalismo
tucano por Lula e Dilma.
* Pedro Paulo Zahluth Bastos
é professor associado (Livre Docente) do Instituto de Economia da Unicamp
e ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica
(ABPHE)
** Marcio Pochmann é professor do
Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de
Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas
Fonte: O
Povo
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